Em gestão corrente ...como o País...

Janeiro 26 2009

    

Dá a surpresa de ser

  

   

Dá a surpresa de ser.

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

   

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

  

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

   

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

  

  

Fernando Pessoa, in

"366 poemas que falam de amor", org. de Vasco Graça Moura,

Quetzal Ed., Lisboa, 2003.

     


  


Janeiro 18 2009

    

O seu nome é gracioso

e muito próprio dela

    

    

   O seu nome é gracioso e muito próprio dela:

   Respira um vago tom de música inocente;

   E lembra a placidez de um lago transparente,

   Recorda a emanação tranquila duma estrela.

 

   Lembra um título bom, que logo nos revela

   A ideia do poema. E todo o mundo sente

   Não sei que afinidade entre o seu ar dolente,

   A sua moridezza, e o nome próprio dela.

    

   E chego a acreditar - ingenuamente o digo -

   Que havia um nome em branco, e Deus pensa consigo

   Em traduzi-lo enfim numa expressão qualquer:

    

   De forma que a mulher suave e graciosa

   Faz parte deste nome um tanto cor-de-rosa,

   E este nome gentil faz parte da mulher.

     

      

Guilherme de Azevedo, in

"366 poemas que falam de amor", org. de Vasco Graça Moura

Quetzal Ed., Lisboa 2004

     


 


Dezembro 07 2008

 

Breve

   

 

Breve

o botão que foste

e o pudor de sê-lo.

   

Breve

o laço vermelho

dado no cabelo.

  

Breve

a flor que abriu

e o sol mudou.

 

Breve

tanto sonho findo

que a vida pisou.

 

João José Cochofel, in

"366 poemas que falam de amor", organização de Vasco Graça Moura, Quetzal Ed., Lisoa, 2004

  


 


Dezembro 03 2008

   

Cantiga

    

Deixa-te estar na minha vida

Como um navio sobre o mar.

  

Se o vento sopra e rasga as velas

E a noite é gélida e comprida

E a voz ecoa das procelas,

Deixa-te estar na minha vida.

    

Se erguem as ondas mãos de espuma

Aos céus, em cólera incontida,

E o ar se tolda e cresce a bruma,

Deixa-te estar na minha vida.

  

À praia, um dia, erma e esquecida,

Hei, com amor, de te levar.

Deixa-te estar na minha vida.

Como um navio sobre o mar.

   

Cabral do Nascimento, in

"366 poemas que falam de amor", antologia de Vasco Graça Moura,

Quetzal Ed., Lisboa, 2003

    


 


Novembro 27 2008

  

Amor, é um arder, que se não sente

  

Amor,é um arder, que se não sente;

É ferida que dói, e não tem cura;

É febre, que no peito faz secura;

É mal, que as forças tira de repente.

 

É fogo, que consome ocultamente;

É dor, que mortifica a Criatura;

É ânsia a mais cruel, e a mais impura;

E frágua, que devora o fogo ardente.

  

É um triste penar entre lamentos;

É um não acabar sempre penando;

É um andar metido em mil tormentos.

   

É suspiros lançar de quando, em quando;

E quem me causa eternos sentimentos;

É qum me mata, e vida me está dando.

   

Abade de Jazente, in

"366 poemas que falam de amor", antologia de Vasco Graça Moura,

Quetzal Ed., Lisboa 2004

    


 


Novembro 05 2008

   

conhecimento

   

  

fiz no teu corpo à noite a travessia

de mares e céus e terras e vulcões

e em breve rodopio as estações

detinham-se esquecidas e foi dia

 

a memória das praias e florestas

perpassou-me na pele e entranhou-se

como um suave afago que assim fosse

espuma que ficou de iras honestas

   

e ao despertar de tanta sonolência

formou-se devagar esta canção

para entreter de novo o coração

tão paciente em sua impaciência

  

até que sendo noite eu atravesso

uma outra vez o mundo, o mar, o vento.

amar é sempre mais conhecimento

e conhecer é tudo o que eu te peço.

  

 

Vaso Graça Moura, in

"Poesia 1977/2000"

     


 

emgestaocorrente às 21:16

Setembro 08 2008

     

   De férias esta semana, no Alto Alentejo, pois claro!, com um calor que não deve haver noutras regiões, 4 poemas eróticos, de rajada!

   Ora toma!

    

      

José Gomes Ferreira

    

De: Café

  

De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos,

mal viu a menina atavessar a rua,

saltou num ímpeto de besouro

e despiu-a toda...

   

E a Que-Sempe-Tanto-Se-Recata

ficou nua,

sonambulamente nua,

com um seio de ouro

e outro de prata.

    

    

Vasco Graça Moura

  

5.    vai-se a lasciva mão

   

vai-se a lasciva mão devagarinho

no biquinho do peito modelando

como nuns versos conhecidos quando

uma mulher a meio do caminho

   

era de vento e nuvens, sombras, vinho,

e sonoras risadas como um bando.

os dedos lestos vão desenredando

roupa,cabelos, fitas, desalinho.

  

a noite desce e a nudez define-a

por contrastes de luz e de negrume

ponto por ponto, alínea por alínea.

  

memória e amor e música e ciúme

transformados nos cachos da glicínia,

macerando no verão sombra e perfume.   

   

  

David Mourão-Ferreira

    

Presídio

 

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.

Que dizer do pescoço, às vezes mármore,

às vezes linho, lago, tronco de árvore,

nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

    

E o ventre, inconsistente como o lodo?...

E o morno gradeamento dos teus braços?

Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:

é também água, terra, vento, fogo...

   

É sobretudo sombra à despedida;

onda de pedra em cada reencontro;

no parque da memóra o fugidio

  

vulto da Primavera em pleno Outono...

Nem só de carne é feito este presídio,

pois no teu corpo existe o mundo todo!

     

    

Natália Correia

   

Cosmocópula

    

O corpo é praia a boca é a nascente

e é na vulva que a areia é mais sedenta

poro a poro vou sendo o curso de água

da tua língua demasiada e lenta

dentes e unhas rebentam como pinhas

de carnívoras plantas te é meu ventre

abro-te as coxas e deixo-te crescer

duro e cheiroso como o aloendro

    

    

in "Eros de passagem, Poesia erótica contemporânea",

Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade,

Ed. Campo das Letras, Porto, 1997

    


 


Outubro 18 2007

eira do cata-vento

  

3. setembro

  

     agora o outono chega, nos seus plácidos

     meneios pelas vinhas, um dos vizinhos passa

     um cabaz de maçãs por sobre a vedação:

     redondas, verdes, o seu perfume vai

     dentro de quinze dias ser mais forte.

    

     a noite cai mais cedo e apetece

     guardar certos vermelhos da folhagem

     e amarelos e castanhos nas ladeiras

     de setembro. a rádio fala no tempo variável

     que vem aí dentro de dias. talvez caia

  

     uma chuvinha benfazeja, a pôr no ponto certo

     os bagos de uva. e há poalhas morosas, mais douradas.

     aproveita-se o outono no macio

     enchimento dos frutos para colhê-lo a tempo.

     devagar, devagar. é mais doce no outono a tua pele.

   

   Vasco Graça Moura,

   in "Poesia 2001/2005", Quetzal Editores, 2006

  

 


emgestaocorrente às 22:39

Junho 06 2007

           

quando, minha luminosa, deitado penso em ti

e a teu lado bebo as sombras que te pousam na pele,

apenas a harmonia se respira

da tua testa pousada no meu peito, das tuas mãos presas às minhas.

    

a noite avança e eu a medo toco o teu cabelo.

o silêncio tem a paz de um olival e dos nossos passeios no alentejo,

o meu amor é como a lua a aflorar-te a face adormecida,

o meu amor é esta e todas as noites, um sobressalto de

estrelas benfazejas,

     

uma espuma serena em que repouses, uma corrente em que nades de alegria,

uma vide a entrelaçar-te, ó minha luminosa, uma concha de ternura que te guarde.

uma espécie de música que vá vibrando em ti.

    

    

Vasco Graça Moura

in  "currente calamo" (Poesia 2001/2005)

 

 

 


emgestaocorrente às 22:27

Abril 19 2007

           

que eu sempre fui bom cavaquista

nem é preciso repeti-lo:

anos depois já só se avista

tanto canário, tanto grilo,

tanto gorgeio, tanto trilo

que de promessas se guarnece:

um mundo e outro, isto e aquilo,

e o povo tem o que merece.

    

vi engrossar de boys a lista,

vi saltitar mais do que esquilo,

de galho em galho ser artista,

e armar o estado em crocodilo.

voracidade? era do estilo.

economia? ai que arrefece!

vi Portugal vendido ao quilo

e o povo tem o que merece.

     

vi muito pássaro na pista

já de asa murcha e intranquilo,

já sem alface nem alpista

e já sem grão dentro do silo,

secou a teta e o mamilo,

chegou a hora, chega o stress.

há vários anos que eu refilo,

e o povo tem o que meece.

    

senhor, na entrada deste asilo,

mordeu-se a isca da benesse

e o povo tem o que merece.

                     

        

     

Vasco Graça Moura

   

(feito durante o interregno guterrista, novamente actual - pobre país!)

         

   


 

emgestaocorrente às 20:38

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