A Medicina e a Clínica
Paulo Mendo*
Há mais de vinte anos afirmei que a clínica, sobretudo em ambulatório, tinha que ser lenta e demorada poque só assim permitia a criação do clima de empatia necessário entre médico e doente. Era a defesa da chamada medicina lenta que, curiosamente, despertou reacções de incompreensão de muitos colegas porque, na altura, vivia-se no convencimento de que a técnica médica e os progressos diagnósticos davam ao clínico rapidamente tudo aquilo que ele precisava para um diagnostico rápido, podendo por isso, diminuir o tempo médio das consultas e ter a seu cargo muito mais doentes! O tempo tem vindo a confirmar que esta é uma visão errada e muito redutora da importãncia da relação entre doente e clinico, visão que despreza o essencial relacionamento entre os dois e centra erradamente o médico sobre a doença sem se preocupar em, investigar, com o seu doente, os comportamentos, hábitos, problemas e angústias que fazem com que cada pessoa “faça” a sua própria doença. Mas infelizmente continua a ser esta a visão corrente na medicina actual, sobretudo a especializada e hospitalar, que priveligia a doença, esquecendo o doente. A enorme confiança, com justa razão, nos avanços da tecnologia médica tem feito com que o médico se “esqueça” de ouvir o doente e, pressionado pelo tempo e confiante nos exames técnicos, reduza o dossier do seu cliente a um conjunto de resultados de exames que pouco ou nada lhe dizem sobre o doente a que pertencem. E as razões são várias, a mais importante das quais talvez seja a burocratização e massificação dos serviços de saúde. A necessária racionalidade da gestão, a contenção de custos, a organização do trabalho, a luta contra os desperdícios, são essenciais, mas transformam, tantas vezes, as relações de compreensão, apoio e delicadeza para com os doentes, amedrontados, angustiados e, tantas vezes desamparados, em frias relações burocráticas em que o papel, o cartão, a guia, ou o cumprimento de labiríntica burocracia se sobrepõem à humana ajuda ao nosso semelhante. E é esse o perigo mortal das grandes organizações estatais de serviços. Envolvidos neste processo, em que os objectivos se medem pelo número de doentes tratados, diminuição dos tempos de internamento, número de actos praticados, número de consultas efectuadas, muitos médicos, felizmente nem todos, esquecem o doente que está perante eles e, confiantes nos exames que pediram e interessados apenas no rápido diagnóstico, “despacham” a consulta sem que o “seu” doente tenha tido sequer a possibilidade de explicar as suas queixas porque não há tempo para isso. E o mal é que, com a persistência destes comportamentos, se gerou uma cultura de serviço que se estende à sociedade, transformando o cidadão num “utente” que procura o médico, para ver se tem as tensões boas, ou se não é diabetico, ou procurando uma cura como se esta estivesse dependente do número de análises e de exames que o médico pedir. Costumo dizer que se vai ao médico como se vai a um posto dos Correios. Neste pede-se um selo ou manda-se uma carta, No médico pedem-se diagnósticos rápidos com análises. Em ambos os sítios ninguém se ficou a conhecer, o que, se é natural nos Correios é um desastre inadmíssivel em medicina clínica. Esta situação tem sido levantada, discutida e analisada pelos médicos de família, nas suas associações, nos seus congressos e nas suas publicações. Porque o médico de família sabe que é a vida de cada um, que são os nossos hábitos, os nossos vícios, o nosso temperamento, os grandes formatadores da forma como a doença, ou a simples perturbação de saúde, se manifesta em cada um de nós. Por isso, sente e sabe a importância de conquistar a confiança dos seus clientes, de os estimular a serem intervenientes interessados e co-responsáveis pelo próprio tratamento, de fazerem equipa consigo e nele confiarem, porque não duvidam da sua compreensão e ajuda. Foi precisamente a importância dada à colheita de uma minuciosa história do doente e à uma rigorosa apreciação clínica dos sinais e sintomas, que tornaram a medicina francesa da primeira metade do seculo XX, a melhor do mundo na sua capacidade de tratar, compreender e centrar toda a sua acção no doente. É esta capacidade de ver no seu cliente um ser humano e não um simpes portador de uma doença, que é essencial em medicina familiar e contitui, por isso, motivo de preocupação e de estudo de propostas adequados, como é o caso com as Unidades de Saúde Familiar (USF) em incrementação nos cuidados primários do SNS. Mas mesmo na área hospitalar, é essencial a delicadeza do atendimento e a franca informação do doente, porque vindo este já referenciado pelo seu médico de família e sendo hospitalizado para tratamento, corre o risco de ser completamente esquecido como pessoa, eclipsado na luta técnica entre a medicina e a sua doença. Aliás ainda há dias, no “Público” de 10 de Junho, um longo artigo anunciava a saída de um livro da autoria de Jerome Groopman sobre a medicina e os médicos na sua relação com a doença e os doentes, onde são denunciados os perigos dos comportamentos profissionais “científicos”, tecnicamente excelentes mas que esquecem o doente. De notar que o autor do livro, que vai ser publicado em Portugal, é um eminente professor da Harvard Medical School, investigador de fama mundial nas áreas da oncologia e SIDA, da neurobiologia e da genética das doenças degenerativas do sistema nerovso, com mais de cento e cinquenta artigos de investigação publicados, para além de ser um frequente editorialista do “Washington Post” e do “New York Times”e escritor de vários livros de política e filosofia da saúde. Enfim uma voz autorizada escutada em todo o mundo científico que esperamos seja ouvida em Portugal.
*Médico Ex-ministro da Saúde
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