Em gestão corrente ...como o País...

Novembro 08 2008

 

Noivado

  

 

   Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.

   -És tu Ernesto, meu amor?

   Não era. Era o Bernardo.

   Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.

   É o que faz a miopia.

 

  

Mário-Henrique Leiria, in

"Contos do Gin-Tonic", Ed. Estampa, 1973

    


 


Novembro 07 2008

 

Carreirismo

 

   Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai adomestou-o.

   Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.

   Voltou passados vinte e dois anos, com chofér fardado.

   Era director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.

    

   

Mário-Henrique Leiria, in

"Contos do Gin-Tonic", Ed. Estampa, 1973


 


Novembro 07 2008

  

Gin sem tónica

  

Uma garrafa de gin

estava a preocupar

o pescador

a garoupa e o rodovalho

não tinham aparecido

pró jantar

que fazer?

telefonou ao ministro

da Pesca e do trabalho

mas o ministro

estava a trabalhar

na cama

com a mulher

foi então

que a garrafa de gin

sugeriu discretamente

porque não

telefonar ao presidente?

telefonaram

o presidente da nação

estava em acção

na cama

com a mulher

nessa altura

até que enfim

encontraram a solução

o pescador

foi para a cama

com a garrafa de gin

  

Mário-Henrique Leiria, in

"Contos do Gin-Tonic", Ed. Estampa, 1973

     


 

emgestaocorrente às 22:21

Setembro 24 2008

mário-henrique leiria / retorno à memória


estar sempre com frio
como o caminhar à noite só sem luz
como a árvore que olha com raiva a tempestade
talvez mesmo como a cama
que conserva apenas as formas já desfeitas
dos corpos que nelas se deitam

depois com o vento
é a saudade das madrugadas doutros tempos
quando o simples descer uma escada
era a mais extraordinária das aventuras
quando a certeza de encontrar uns braços abertos
estava evidente no fundo da escuridão

então tudo era simples muito belo
qualquer palavra tua
era a mais maravilhosa das afirmações
qualquer gesto que fizesses
era o mais belo movimento de amor
caminhar ao acaso
era a grande viagem sempre renovada todos os dias
e à noite
não havia frio como agora
mesmo que o mar nos cobrisse de algas
mesmo que a areia
trouxesse consigo o gelo das mais remotas estrelas

agora amor escuto o teu olhar
através da distância cada vez maior e mais alucinante
que nos separa
escuto-o através da ponte
que formaram os caminhos por nós percorridos um dia
vejo-te como partiste
muito pura flores na testa mãos abertas
igual às madrugadas doutros tempos
igual à grande aventura
de caminhar ao acaso


mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998

 

(via   #poesia )


 

emgestaocorrente às 22:03

Janeiro 23 2007

Mário-Henrique Leiria    

 

     Toda a gente acreditava que era. O presidente da Câmara nomeava-o Comendador. Iam buscar a coluna de Nelson, tiravam o Nelson e punham o Arcebispo lá em cima. E davam-lhe vinho do Porto.

      Então o Arcebispo de Beja dizia:

      - Sou a Josefa de Óbidos.

      Ainda acreditavam que era, embora menos. O presidente da Câmara apertava-lhe a mão. Iam buscar o Castelo de Óbidos, tiravam os óbidos e punham o arcebispo na Torre de Menagem. Além disso davam-lhe trouxas d'ovos.

      Nessa altura, convicto, o arcebispo de Beja afirmava:

      - Sou o arcebispo de Beja.

      Não acreditavam. Davam-lhe imediatamente uma carga de porrada. E punham-no no olho da rua. Nu.

 

      Mário Henrique Leiria

      in "Novos Contos do Gin", 1989

 

   

 

 


 


 
emgestaocorrente às 09:07

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