De volta ao "Corte na aldeia":
De volta ao "Corte na aldeia":
Júlio (1902-1983), Cabeça de mulher e lua, 1973
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).
Breve
Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.
João José Cochofel, in
"366 poemas que falam de amor", organização de Vasco Graça Moura, Quetzal Ed., Lisoa, 2004
Eugénio de Andrade, in
"Os amantes sem dinheiro"
Cantiga
Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.
Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.
Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.
À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.
Cabral do Nascimento, in
"366 poemas que falam de amor", antologia de Vasco Graça Moura,
Quetzal Ed., Lisboa, 2003
Soneto de amor
Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.
Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.
E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.
Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!
José Régio, in
"Eros de passagem", Poesia Erótica Contemporânea,
selecção de Eugénio de Andrade, Campo das Letras, Porto, 1997
Amor, é um arder, que se não sente
Amor,é um arder, que se não sente;
É ferida que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.
É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
E frágua, que devora o fogo ardente.
É um triste penar entre lamentos;
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.
É suspiros lançar de quando, em quando;
E quem me causa eternos sentimentos;
É qum me mata, e vida me está dando.
Abade de Jazente, in
"366 poemas que falam de amor", antologia de Vasco Graça Moura,
Quetzal Ed., Lisboa 2004
Os lagartos ao sol
Expõe ao sol a perna escalavrada,
no Jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.
E conversamos: "Heliterapia
medicina barata em Portugal."
Accionista do sol, ajudo à missa:
"But, não muito, que senão faz mal."
Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.
Tavez que, se Briol nos consevara,
alguém um dia nos ajardinara.
Alexandre O'Neill, in
"De ombro na ombreira", Cadernos de poesia 3, Ed. D. Quixote, 1969
Rapinado, claro!, do "Corte na Aldeia":
O teu corpo
Um corpo secreto
e espesso
por onde deslize o silêncio
A saliva da tarde
que vire o desejo
do avesso
Mara Teresa Horta, in
"Só de amor"
Ilha
Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias
David Mourão-Ferreira, in
"Obra Poética,
Teatro dos dias
Ninguém cheira melhor
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
de cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.
Eugénio de Andrade, in
"Ofício de paciência", 1994
Gin sem tónica
Uma garrafa de gin
estava a preocupar
o pescador
a garoupa e o rodovalho
não tinham aparecido
pró jantar
que fazer?
telefonou ao ministro
da Pesca e do trabalho
mas o ministro
estava a trabalhar
na cama
com a mulher
foi então
que a garrafa de gin
sugeriu discretamente
porque não
telefonar ao presidente?
telefonaram
o presidente da nação
estava em acção
na cama
com a mulher
nessa altura
até que enfim
encontraram a solução
o pescador
foi para a cama
com a garrafa de gin
Mário-Henrique Leiria, in
"Contos do Gin-Tonic", Ed. Estampa, 1973
Variação
Uma eternidade, mesmo se a tivesse nos dedos,
seria pouco para o tempo que a chuva demora
nos teus lábios: quase o tempo de
um pássaro rondar as rosas, e morrer.
Francisco José Viegas, in
"Metade da Vida"
conhecimento
fiz no teu corpo à noite a travessia
de mares e céus e terras e vulcões
e em breve rodopio as estações
detinham-se esquecidas e foi dia
a memória das praias e florestas
perpassou-me na pele e entranhou-se
como um suave afago que assim fosse
espuma que ficou de iras honestas
e ao despertar de tanta sonolência
formou-se devagar esta canção
para entreter de novo o coração
tão paciente em sua impaciência
até que sendo noite eu atravesso
uma outra vez o mundo, o mar, o vento.
amar é sempre mais conhecimento
e conhecer é tudo o que eu te peço.
Vaso Graça Moura, in
"Poesia 1977/2000"
(Para um fim de tarde de outono)
O desejo aceso
O desejo aceso
na lareira do corpo
Com a sua chama
sem rumo
em forma de asa
Maria Teresa Horta, in
"Só de amor"
De volta ao "Corte na aldeia", com todo o gosto e a devida vénia:
Era chama de queimar
Peso de Outono
Eu vi o Outono desprender suas folhas,
cair no regaço de mulheres muito loucas.
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
na cidade de Heidelberg pronta para a neve
saboreavam tepidamente a sua ignorância.
Eu vi as amantes ensandecerem
com esse peso de Outono. Perderam as forças
com o Outono masculino e sangrento.
Os gritos a meio da noite
das amantes a meio da loucura voavam
como facas para o meu peito.
Alguns poetas li-os melhor no Outono,
certos amores só poderia tê-los,
como tive, nos dias doces da vindima.
Fernando Assis Pacheco, in
"A Musa Irregular", Edições Asa, 2º ed., 1996
Incêndio
Tu acendes a chama
do meu corpo
pões a lenha ao fundo
em sítio seco
Procuras no desejo
o ponto certo
e convocas aí
o lume certo
Se a madeira demora
a ganhar fogo
tomas-me as pernas
e deitas lento o vinho
Riscas os fósforos todos
e depois
é mais um incêndio
que adivinho
Maria Teresa Horta, in
"Só de amor"
Falência
Meu coração, rubra esplanada
abriu no verão, à beira-mar,
sobre uma praia desesperada
onde ninguém foi veranear.
David Mourão-Ferreira, in
"Obra Poética"