Em gestão corrente ...como o País...

Agosto 18 2007

    

O poema que a seguir se publica pertence a um livro editado em 1960, em pleno sufoco salazarengo.

Porque será que, repentinamente, soa tão actual?

A todos os funcionários, especialmente aos públicos, vitimas de ataques de uma ferocidade que não existia nem sequer antes do 25 de Abril.

    

 O funcionário cansado

  

   A noite trocou-me os sonhos e as mãos

   dispersou-me os amigos

   tenho o coração confundido e a rua é estreita

   estreita em cada passo

   e as casas engolem-nos

   sumimo-nos

   estou num quarto só num quarto só

   com os sonhos trocados

   com toda a vida às avessas a arder num quarto só

  

   Sou um funcionário apagado

   um funcionário triste

   a minha alma não acompanha a minha mão

   Débito e Crédito Débito e Crédito

   a minha alma não dança com os números

   tento escondê-la envergonhado

   o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente

   e debitou-me na minha conta de empregado

   Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

   Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

   Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

    

   Soletro velhas palavras generosas

   Flor rapariga amigo menino

   irmão beijo namorada

   mãe estrela música

   São as palavras cruzadas do meu sonho

   palavras soterradas na prisão da minha vida

   isto todas as noites do mundo uma noite só comprida

   num quarto só

     

António Ramos Rosa,

in "Viagem através duma nebulosa", 1960

   


 


Agosto 18 2007

    

A rapariga do sweater vermelho

    

   Para os que gostam de fruta tu tens o sabor almiscarado.

   Entre os balubas serias uma fêmea baluba cor de cera.

   No Egipto era uma flor de lótus o teu penteado

   para os insectos serás outra variedade de pêra.

   

   Na cama dos solitários andrenídeos

   és um corpo apetecido pelas abelhas

   e se em teus dedos nascer a flor dos suicídios

   és um pecado venial de unhas vermelhas,

  

   venial volumosa e branca muito odorífera

   dando claridade à sombra dos quartos de aluguer.

   Para os assassinos serás uma arma mortífera

   para os pederastas a raiva de não serem mulher.

   

   Para os anjos és talvez a alternativa

   de em ti encarnar a graça que eles têm no ar.

   É de ti mesma que estás arborizada e viva

   ou serás como as rosas apenas para ver e cheirar?

    

Natália Correia,

in "O vinho e a lira", 1966

   


 

emgestaocorrente às 14:17

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