Má consciência
O adjectivo
dá-me de comer.
Se não fora ele
o que houvera de ser?
Vivo de acrescentar às coisas
o que elas não são.
Mas é por cálculo,
não por ilusão.
Alexandre O'Neill,
in "De ombro na ombreira", Lisboa, 1969
Má consciência
O adjectivo
dá-me de comer.
Se não fora ele
o que houvera de ser?
Vivo de acrescentar às coisas
o que elas não são.
Mas é por cálculo,
não por ilusão.
Alexandre O'Neill,
in "De ombro na ombreira", Lisboa, 1969
a vida de família tornou-se bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer
a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia
mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes
Alexandre O'Neill, in "Poesias Completas 1951/1986",
Imprensa Nacional, Lisboa, 1990
A meu favor
A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.
Alexandre O'Neill, in
"Poemas de Amor", org. Inês Pedrosa,
Publ. D. Quixote, Lisboa, 2003.
Os lagartos ao sol
Expõe ao sol a perna escalavrada,
no Jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.
E conversamos: "Heliterapia
medicina barata em Portugal."
Accionista do sol, ajudo à missa:
"But, não muito, que senão faz mal."
Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.
Tavez que, se Briol nos consevara,
alguém um dia nos ajardinara.
Alexandre O'Neill, in
"De ombro na ombreira", Cadernos de poesia 3, Ed. D. Quixote, 1969
Alpendre/2
"Quem muito poupa na carne, acaba por comer a gengiva",
dizia um compadre meu que se arruinou com as mulheres.
O doidivanas tinha alguma razão.
Só que não lhe serviu de nada.
O coitado até comeu os dentes!
Cá o Fernandes governou-se como pôde.
Ao princípio nada foi fácil, diga-se a verdadinha.
Mas agora é essa fartura que se vê:
as arcas cheias e terra (desta vez a do berço!) para passear
[com os olhos às trindades.
Cá o Fernandes poupou carne e gengiva.
Soube levar sem grandes sobressaltos a barquinha da vida.
Mandou o filho, o duma listra só, para os estudos.
Era burro. Não dava. Foi para a oficina.
Acho que se perdeu por aí nas políticas.
A Quina está velha.
Tem as pernas que nem mármore de Extremoz,
mas é muito minha amiga.
Ainda me deu uma filha.
A filha está casada com um médico.
Vivem em Coimbra.
Alexandre O'Neill, in
"Entre cortina e a vidraça", 1972
O tempo faz caretas
Visto que não há regresso
e o tempo está de mau cariz,
viremos o dia do avesso
para ver como é, primeiro.
A carranca dum velho ou o trazeiro
prazenteiro dum petiz?
Alexandre O'Neill, in
"No Reino da Dinamarca", 1958
(Mesmo a propósito para quem está em gestão corrente)
Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.
Alexandre O'Neill
in "De ombro na ombreira", 1969
Que vergonha, rapazes! Nós práqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no "diz que"
e a desnalgar a fêmea ("Vist'? Viii!")
Que miséria, meus filhos! Tão sem geito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
mas logo desço à rua, encontro o Roque
("O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!")
e desabafo: -Ó Roque, com franqueza:
você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, sr. O'Neill! E ... as varizes?
Alexandre O'Neill
in "De ombro na ombreira", 1969